sexta-feira, janeiro 26, 2007

Por um segundo

O asfalto esquentava sob o sol de quarenta graus no centro do Rio de Janeiro. Duas pessoas incógnitas subiam à superfície pela escada rolante de uma estação de metrô do subúrbio de Paris. Um cristal de mil dólares era derrubado da prateleira de uma loja frequentada pela mais alta burguesia de Budapeste. Neste mesmo segundo, uma criança, em algum lugar do mundo, aprendia que são três as cores primárias, lição que ela guardaria para toda a vida.

Desta forma, tudo estava em seu devido lugar e o mundo podia ter mais um dia comum nas escolas, nos negócios, nas guerras, nas construções, nos aeroportos, na internet, na exploração social, nas consultas médicas. Deus permitira que, por mais um dia, fosse mantida a ordem, a mesma do dia anterior, a mesma ordem que privilegia poucos e martiriza muitos. Não houve, até este segundo, nenhum atentado terrorista, nem de abelhas, uma queda de energia sequer. O chão estava firme, o ar poluído, o céu azul, os carros correndo.

Ninguém poderia supor o que ocorreria no próximo segundo. Nem por isso teria de ocorrer algo incrível, só porque os textos de nosso tempo lançam mão deste recurso: a rotina é rotina até que tudo sai dos eixos.

Mas, por este texto pertencer a este tempo, não poderia o autor se esquivar deste recurso somente para apresentar-se como um à frente de seu tempo. Por esta mesma razão, informo-lhes que houve sim algo incrível no segundo seguinte àquele do calor e do metrô e do cristal e das cores primárias, porém logo o sabereis. Antes, vale a pena refletirmos o que é algo inacreditável.

O inacreditável é o biquini para o esquimó ou uma República platônica para um país assolado pela corrupção. O inacreditável é sempre maior ou menor, de acordo com a realidade vivida por cada um. Ele sempre leva à descrença de que algo pode ser alcançado. Portanto, deve-se levar em conta que o que é crível para você pode não o ser para outro.

O relógio marca as horas somente, independentemente se o céu ainda está escuro ou se já amanheceu o dia. Cabe a quem o consultar acreditar nas horas ou acreditar que as pilhas estão fracas.

Hoje, a relativização de tudo também é moda, o que novamente encaixa o autor neste tempo.

Voltemos, pois, ao inacreditável ocorrido na narrativa. O que impressionou tanto, a ponto de levar à produção deste texto, foi que alguém, em algum lugar ignóbil deste planeta, percebeu que tem a capacidade de amar outra pessoa. E é exatamente por pertencer a este tempo, que o autor do texto julgou o ocorrido tão inacreditável.

le