A monótona e persistente cadência das ondas adormecia-o. A areia branca acalentava o seu corpo como num abraço quente. O céu escuro e salpicado de luz deixava entrever poucos detalhes de seu corpo que, após um dia de muitas descobertas, jazia silencioso.
Seu nome era Cristiano, derivado do nome de Cristo, talvez uma previsão do seu destino de traições. Nascera pobre e nunca frequentara a escola, vezes por falta de dinheiro outras por falta de interesse. Afinal, pouco era necessário saber para carregar e amontoar os papelões que seu pai trazia das ruas. Não brincava e nunca sorria. Descobriu cedo a dor de ver crianças bem vestidas, com o cabelo penteado e mochilas coloridas indo à escola, enquanto seu pai chegava com mais um carregamento a ser empilhado.
Cristiano aprendeu cedo a sonhar. Aliás, sonhar Cristiano fazia melhor do que as crianças que não precisavam transpor a barreira da carência. Seu grande sonho era ir à praia, ir ter com as imagens que um dia viu na televisão: vagas verdes quebrando numa areia linda.
O pai era mais patrão que pai. A mãe, dona Aparecida, ausente e submissa, era de uma família de fazendeiros, falidos graças à extravagância de seu patriarca, seu Raimundo. Ao ver-se endividado e com a família passando fome, seu Raimundo suicidou-se, deixando a esposa - dona Maria - mais sete filhos com as dívidas, com a fome e com seu corpo.
A viúva e os filhos foram obrigados a migrar do interior do estado para a capital, Natal, a fim de fugir dos credores e do terror de viver numa casa assombrada pelo espírito de um suicida. Aparecida, que apesar da infância sem dificuldades manteve-se rude, começou a trabalhar como vendedora de cosméticos. O contra senso de sua rudeza e de sua profissão foi a causa de seu fracasso. No entanto, em uma de suas andanças pela cidade, batendo de porta em porta, conheceu Pedro.
Casaram-se enfim Pedro e Aparecida. A festa foi possível somente porque a patroa de Aparecida, que agora era doméstica, ofereceu-se para arcar com os gastos. O terreno foi comprado, o barraco erguido e os trapos acumulados. Os filhos foram nascendo. Cristiano era o terceiro de um total de cinco. Seu Pedro com muito labor conseguia sustentar a casa. Apesar disso, seu ímpeto de macho dominante obrigou-o a proibir dona Aparecida de trabalhar fora. Dona Aparecida era ausente aos filhos e submissa ao marido: assim aprendera a ser desde pequena com o exemplo da mãe.
Com mãe e pai ausentes, a primeira pelo medo do esposo, o segundo pela falta de sentimento paterno, Cristiano cresceu querendo ter uma família de verdade, na qual, ele, como chefe, faria tudo diferente ao que seu pai fazia.
Cristiano enfim conheceu Silvana. Ele tinha dezoito anos, ela dezessete. Silvana sabia ler e escrever. Silvana, apesar da pouca vaidade, era bonita. Aos poucos, Cristiano passou a sentir o que ele nunca imaginaria antes existir: Cristiano passou a amar. Ela correspondia, não na mesma proporção. O coração de Cristiano era todo de Silvana, mas Cristiano tinha de repartir o de Silvana com outro homem.
Porém, disso ele ainda não sabia. E era bom que não soubesse, pois sua realidade ficou menos dura com este novo sentimento. Os fardos de papelão não pareciam mais tão pesados e a anestesia surtia efeito mesmo quando seu Pedro ofendia Cristiano injustamente por alguma tarefa supostamente mal-feita.
Silvana levou-o à praia. Para Cristiano, a praia pareceu-se pouco com a imagem que ele tinha em sua mente. Apesar disso, maravilhou-se. O que Cristiano não sabia é que além do coração, ele também dividida o corpo de Silvana com outro homem: Silvana levou-o ao mesmo lugar onde, no dia anterior, transara com o outro.
Porém, disso ele também ainda não sabia.
Cristiano voltou para casa e, à noite, sonhou com a praia. No dia seguinte, sempre que pensava no lugar onde estivera, associava-o à figura imaculada de Silvana. Tomou coragem para abandonar as obrigações e ir ao mesmo ponto da praia em que esteve.
Que estranho! Parece o pai! E era ele mesmo. Ao seu lado, nua, deitada na areia e abraçada com ele... Ah, meu Deus! Silvana!
Cristiano volta para casa, termina, com lágrimas a escorrer no rosto, as obrigações com seus papéis imundos. Ao anoitecer, volta o pai, hoje quase sem nenhum carregamento. Lógico! Esteve a comer vagabundas o dia todo!
Quinze minutos depois, Cristiano sai de casa em direção à casa de Silvana, levando ódio nos olhos e o revólver de seu pai na cintura. Deixara seis cadáveres na cozinha de casa: matou o pai pela traição, a mãe porque não merecia saber que foi traída e os irmãos por não querer repetir a angústia de dona Aparecida quando do suicídio de seu Raimundo.
Na casa de Silvana, pede a ela para irem à praia, pois queria amá-la novamente naquele lugar tão lindo. Lá chegando, Cristiano desferiu quatro tiros no tórax e no rosto de Silvana. Deitou-se ao lado do corpo pequeno e sedutor da traidora, e, olhando as estrelas no céu, percebeu que nunca havia reparado nelas com tanta atenção. Decidiu ir até elas, não para encontrar a traidora nem sua família, mas porque, sem aquele sentimento que tinha por Silvana, a dureza de sua realidade seria pior do que era antes.
Deu um tiro na própria cabeça, mas, apesar da areia ensanguentada, ele continuava a olhar as estrelas. Sabia que morreria em instantes, contudo queria aproveitar o tempo que lhe restava olhando aqueles pedacinhos de luz, antes imperceptíveis a ele. Já não sentia o corpo e as vistas começavam a se anuviar. Sentia um sono devastador e sabia que, se dormisse, não mais acordaria, mas a monótona e persistente cadência das ondas adormecia-o. A areia branca acalentava o seu corpo como num abraço quente. O céu escuro e salpicado de luz deixava entrever poucos detalhes de seu corpo que, após um dia de muitas descobertas, jazia silencioso.
le
quinta-feira, fevereiro 22, 2007
Assinar:
Comentários (Atom)