sexta-feira, maio 25, 2007

Pobre que pensa é pecador

Branco, apesar da distante descendência africana, cristão com ressalvas, leitor de figuras, amante da arte do ócio. Assim era Napoleão Silva, contraditório no nome, nas idéias, na origem, em tudo. Vivia como se não houvesse de prestar contas a ninguém. Fizera filhos em todos os morros por que passava - e já havia habitado seis. Conhecido pedreiro da região norte da cidade do Rio, auxiliou diversas construções da vizinhança, enchia lajes quase todos os finais-de-semana, em troca apenas do churrasco no fim do serviço. Era também conhecido porque participou de uma equipe de pedreiros, contratados por uma empreiteira, para a construção de um hotel de luxo lá na zona sul, em Ipanema.

Queria ler livros, mas os únicas letras que conseguia unir eram as que vinham no letreiro do ônibus, já que as havia decorado: IRAJÁ. Sabia que os livros traziam histórias maravilhosas, em que animais falavam, pessoas voavam e Deus existia em carne e osso. (Tinha ouvido uma vez que Deus é alma, é espírito, é invisível). Queria poder entender como algo existe e não pode ser sentido, nem apalpado. Seu Napoleão também sabia que o ar é invisível, mas sabia que ele estava ali, porque às vezes ventava. Talvez Deus estivesse só na mente das pessoas, talvez Deus é que fosse criação do homem, não o homem criação de Deus.

Estava nestas reflexões quando olhou pela janela e avistou o ponto em que deveria descer. Levantou-se às pressas e puxou a corda que dá sinal de parada. Caminhando pela calçada, sozinho mesmo estando entre pessoas que o conheciam, seu Napoleão passa absorto nas idéias que lhe surgiram no ônibus, mas tentava deixar de pensar nisso já que era blasfêmia pensar e questionar coisas de Deus.

Chegou em casa, abriu o cadeado que unia os elos da corrente que servia para fechar-lhe a porta de casa, uma porta de madeirite, com um furo no lado direito, pelo qual se passava a corrente. Entrou, deitou em sua cama, já eram oito horas da noite. Morava sozinho, recebia visitas somente dos filhos, que o visitavam de tempos em tempos, de algumas prostitutas e de moças da vizinhança que conseguia levar para cama. Apesar das visitas e da fama que tinha na comunidade, seu Napoleão sentia-se sozinho. Agora, por exemplo, não tinha ninguém para fazer-lhe um café ou para conversar. Poderia ir ao bar, lá estariam os outros vizinhos, mas não é bem isso que seu Napoleão queria. Não queria falar com bêbados, não queria mais transar só para gozar e depois chutar a moça para fora de casa. Não que não tivesse necessidades fisiológicas de sexo, mas suas necessidades psicológicas passavam a falar mais alto.

A situação se tornava cada vez pior. A vizinhança já se perguntava porque seu Napoleão não saía mais de casa quando chegava do trabalho.

Era sexta-feira, a mesa na porta do bar estava cheia de garrafas e de homens bêbados ao redor conversando animadamente. A conversa era o jogo de futebol que ocorreria no final-de-semana, mas como qualquer prosa de bar, ela andava e se modificava e tomava novos rumos, até desembocar novamente na situação de seu Napoleão. Um grupo de vizinhos decidiu ir à casa de seu Napoleão, convidá-lo para ir ao bar e tentar animá-lo a sair novamente de casa.

Quatro dos homens que estavam na mesa do bar percorreram as escadas sinuosas da favela até chegarem à porta de seu Napoleão. Batem à porta e uma voz muito rouca e baixa soava lá dentro incompreensível. Os homens insistem. A corrente se mexe e se ouve o ruído do cadeado sendo aberto. A porta, entreaberta, mostra um Napoleão mais enrugado, curvado, trêmulo e triste. Um dos homens toma a dianteira "está tudo bem com o senhor, seu Napoleão?". O velho responde ao homem:

- Não, meu filho, sinto que estou morrendo. Sofro por não ter feito de minha vida uma preparação para a minha velhice. Fiz filhos, paguei a pensão com muita dificuldade a todos eles, mas onde eles estão agora? Não que eu esteja cobrando a presença deles aqui, já que estive ausente esse tempo todo da vida deles. Onde estão as mulheres que se deitaram comigo? Elas me serviram só para que eu botasse para fora minha porra e aliviasse o meu tesão. Mas onde elas estão agora? Devem estar se deitando com outros homens e não se lembram mais deste velho. E eu devo cobrar a presença delas aqui também? Não, não devo, meu filho, porque usei essas mulheres como objeto. O que tenho feito de bom nesta vida? Dizem que os livros contam histórias de coisas bonitas e que sempre terminam bem. Queria muito ter lido um livro, apenas para conhecer uma história que tem um final feliz. Mas de uma coisa eu tenho certeza: estou sofrendo desse jeito por culpa minha; estou assim desde quando questionei se Deus existia ou não um dia no ônibus.

le

5 comentários:

Anônimo disse...

escrita maravilhosa, sarcástica, articulada e coesa (mas que podia ser um funcionariozinho público ou um professorzinho ao invés de um pedreiro, podia).

e o que vento venta, isso é fato.

Anônimo disse...

Ah, como faz bem para alma (se é que ela exite). Muito obrigado.

Eu sempre penso nisso, mas jamais poderia ilustrar tão bem quanto você o fez.

Como é pobre o homem que pensa, como peca o homem que pensa. O homem pobre que pensa então, é pecador em dobro. Pois abandona a felicidade da ignorância para entar no caminho sem volta da infelicidade do pensamento, onde as perguntas são muitas e as repostas, estas podem simplesmente não existir. Daí a tristeza e agonia de quem se encheu de questões, que agora são mais importantes do que a própria vida, e não pode nem sequer comprar ou ler um livro em busca de um alívio para os seus pensamentos. Triste.

Valeu le.

Anônimo disse...

Nunca tinha pensado nessa hipótese!

Quem se questiona, por vezes pode encontrar respostas em conversas com amigos, conversas com professores ou outras pessoas que se encontram dentro do mesmo pensamento! E mesmo que não haja pessoa alguma, ainda existem os livros para saciar a sede pelo conhecimento, matar a vontade de ter uma explicação!

Mas e quem não tem amigos na mesma situação e para piorar é analfabeto?

Talvez não existam muitos Napoleões da Silva, mas é verossímel que alguns estejam dentro dessa situação!

Curti o pensamento!

Anônimo disse...

:)

Desse eu gostei bastante! Só acho que não dá para mudar a personagem e que tanto a sacada do nome da personagem quanto a relação entre título e provocação reflexiva são demais.

Beijinho.

Anônimo disse...

Triste!
Mais uma personagem fictícia presente aos montes nesse nosso mundo real tão desigual.
M-A-R-A-V-I-L-H-O-S-O!!!

beijos